História antiga: o empresário multado

Um empresário da cidade gaúcha de São Leopoldo viveu uma triste experiência. Foi multado por um fiscal do INSS por… dar educação a seus empregados. Felizmente a história do Geremia teve final feliz. O artigo dele foi publicado pela revista Exame em setembro de 1996. Pouco mais de um ano depois, a lei foi mudada.

Por Silvino Geremia
EXAME

Acabo de descobrir mais um desses absurdos que só servem para atrasar a vida das pessoas que tocam este país: investir em educação é contra a lei. Vocês não acreditam? Minha empresa, a Geremia, tem 25 anos e fabrica equipamentos para extração de petróleo, um ramo que exige tecnologia de ponta e muita pesquisa. Disputamos cada pedacinho do mercado com países fortes, como os Estados Unidos e o Canadá. Só dá para ser competitivo se eu tiver pessoas qualificadas trabalhando comigo. Com essa preocupação criei, em 1988, um programa que custeia a educação em todos os níveis para qualquer funcionário, seja ele um varredor ou um técnico.

Este ano um fiscal do INSS visitou a empresa e entendeu que educação é salário indireto. Exigiu o recolhimento da contribuição social sobre os valores que pagamos aos estabelecimentos de ensino frequentados por nossos funcionários, acrescidos de juros de mora e multa pelo não recolhimento ao INSS. Tenho que pagar 26 000 reais à Previdência por promover a educação dos meus funcionários? Eu acho que não. Por isso recorri à Justiça. Não é pelo valor, é porque acho essa tributação um atentado. Estou revoltado. Vou continuar não recolhendo um centavo ao INSS, mesmo que eu seja multado 1 000 vezes.

O Estado brasileiro está falido. Mais da metade das crianças que iniciam a 1a série não conclui o ciclo básico. A Constituição diz que educação é direito do cidadão e dever do Estado. E quem é o Estado? Somos todos nós. Se a União não tem recursos e eu tenho, eu acho que devo pagar a escola dos meus funcionários. Tudo bem, não estou cobrando nada do Estado. Mas também não aceito que o Estado me penalize por fazer o que ele não faz. Se a moda pega, empresas que proporcionam cada vez mais benefícios vão recuar.

Não temos mais tempo a perder. As leis retrógradas, ultrapassadas e em total descompasso com a realidade devem ser revogadas. A legislação e a mentalidade dos nossos homens públicos devem adequar-se aos novos tempos. Por favor, deixem quem está fazendo alguma coisa trabalhar em paz. Vão cobrar de quem desvia dinheiro, de quem sonega impostos, de quem rouba a Previdência, de quem contrata mão-de-obra fria, sem registro algum.

Sou filho de família pobre, de pequenos agricultores, e não tive muito estudo. Completei o 1o grau aos 22 anos e, com dinheiro ganho no meu primeiro emprego, numa indústria de Bento Gonçalves, na serra gaúcha, paguei uma escola técnica de eletromecânica. Cheguei a fazer vestibular e entrar na faculdade, mas nunca terminei o curso de Engenharia Mecânica por falta de tempo. Eu precisava fazer minha empresa crescer. Até hoje me emociono quando vejo alguém se formar. Quis fazer com meus empregados o que gostaria que tivessem feito comigo. A cada ano cresce o valor que invisto em educação porque muitos funcionários já estão chegando à Universidade.

O fiscal do INSS acredita que estou sujeito a ações judiciais. Segundo ele, algum empregado que não receba os valores para educação poderá reclamar uma equiparação salarial com o colega que recebe. Nunca, desde que existe o programa, um funcionário meu entrou na Justiça. Todos sabem que estudar é uma opção daqueles que têm vontade de crescer. E quem tem esse sonho pode realizá-lo porque a empresa oferece essa oportunidade. O empregado pode estudar o que quiser, mesmo que seja Filosofia, que não teria qualquer aproveitamento prático na Geremia. No mínimo, ele trabalhará mais feliz.

Meu sonho de consumo sempre foi uma Mercedes-Benz. Adiei sua realização várias vezes porque, como cidadão consciente do meu dever social, quis usar meu dinheiro para fazer alguma coisa pelos meus 280 empregados. Com os valores que gastei no ano passado na educação deles, eu poderia ter comprado duas Mercedes. Teria mandado dinheiro para fora do país e não estaria me incomodando com leis absurdas. Mas não consigo fazer isso. Sou um teimoso.

No momento em que o modelo de Estado que faz tudo está sendo questionado, cabe uma outra pergunta. Quem vai fazer no seu lugar? Até agora, tem sido a iniciativa privada. Não conheço, felizmente, muitas empresas que tenham recebido o tratamento que a Geremia recebeu da Previdência por fazer o que é dever do Estado. As que foram punidas preferiram se calar e, simplesmente, abandonar seus programas educacionais. Com esse alerta temo desestimular os que ainda não pagam os estudos de seus funcionários. Não é o meu objetivo. Eu, pelo menos, continuarei ousando ser empresário, a despeito de eventuais crises, e não vou parar de investir no meu patrimônio mais precioso: as pessoas. Eu sou mesmo teimoso.

*Silvino Geremia é empresário em São Leopoldo, no Rio Grande do Sul

Em 1998 saiu na mesma Exame a conclusão para o caso:

Um imposto a menos – 25/02/1998

Ontem – Um empresário conclui que sua empresa só será mais competitiva se o nível de educação de seus empregados for aumentado (alguma novidade?). Ele decide custear o ensino de seu pessoal. Vem um fiscal do INSS e tasca-lhe uma multa. Por quê? Porque os gastos com a educação de funcionários eram considerados remuneração indireta pela lei. E, como tal, deveriam ser somados ao salário de cada um para efeito de cálculo da contribuição social devida ao INSS. Essa foi a situação vivida pelo empresário Silvino Geremia, de São Leopoldo, Rio Grande do Sul. Ele a denunciou num artigo escrito para EXAME, publicado como Opinião da edição de 25 de setembro de 1996 com o título “Sou um fora-da-lei”. Para Geremia, a situação era um absurdo num país que exibe enorme deficiência no campo da educação. “Essa tributação é um atentado”, dizia. “Vou continuar não recolhendo nem um centavo ao INSS, nem que seja multado mil vezes”.

Hoje – Não precisou. Silvino Geremia não é mais um fora-da-lei. De acordo com a Lei nº 9528, de 10 de dezembro passado, os valores despendidos com a instrução dos funcionários não são mais levados em conta para o cálculo da contribuição social. “Essa nova lei representa uma das maiores obras sociais do governo”, diz Geremia. “É um marco na história do país.” Para ter acesso à isenção, no entanto, a empresa deve estender o benefício a todos os empregados, indistintamente. “Deixamos de desestimular os empresários a investir em algo tão importante como a educação”, diz o ministro da Previdência, Reinhold Stephanes. “O artigo de Silvino Geremia foi a gota dágua para que se procedesse à mudança.” Valeu, Geremia.

Textos sampleados e sapecados daqui e daqui

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