O funk é o talibã da música

A frase do título é de um conhecido meu, o Torquemada, e vem se encaixar muito bem com o texto abaixo, do jornalista Fernando Toledo. Logo depois, alguns mitos funkeiros detonados por uma galera deste site.

FUNK NÃO É MÚSICA, MUITO MENOS ARTE1

Fernando Toledo
Caderno B – Jornal do Brasil – 27 de março de 2005

Muito se escreve sobre o funk carioca: alguns defendendo-o como manifestação artística legítima dos guetos do Rio de Janeiro; outros atacando-o, baseados em seus aspectos mais óbvios, como suas letras estilisticamente pobres, geralmente calcadas na apologia de drogas, violência e sexo desenfreado. Tudo isso é real, sem dúvida, mas o que esses óbvios detratores se esquecem é do aspecto mais importante de tudo isso: o funk carioca não pode, em hipótese alguma, ser chamado de música.

Para que o fenômeno musical ocorra, três elementos devem estar presentes: ritmo, melodia e harmonia. E, nesse pretenso estilo, somente o primeiro se manifesta. O funk carioca se baseia, simplesmente, em frases entoadas ao longo de uma base rítmica, sem que haja um sentido horizontal (notas em série) ou vertical (notas sobrepostas, constituindo acordes). Dessa forma, não é música.

Outro aspecto que cabe ressaltar é o de que qualquer obra de arte deve advir do engenho humano de uma transmutação da realidade existente por meio do homem.2 E os ditos “compositores” de funk não operam neste sentido: limitam-se a samplear bases preexistentes para que os supostos “cantores” desfilem sua pretensa poesia. O elemento humano, o ser criativo, está excluído, logo, não pode nem mesmo ser chamado de arte, mesmo com a maior das condescendências.

Assim sendo, pode-se afirmar, sem medo, que o funk carioca não é manifestação artística legítima de gueto nenhum, visto que, simplesmente, não é música, nem mesmo arte. E que opera numa esfera muito mais distante do humano.

DEFESA DO “FUNK CARIOCA” É CARREGADA DE PRECONCEITO

Como sabemos, esse é o discurso do “funk carioca”: a “ruptura de preconceitos”, o “fim da discriminação” etc… Até Millôr Fernandes já ironizou essa “máxima” que é a obsessão dos popularescos em geral. Tudo dando a idéia de que se todos nós aceitarmos o “pancadão” como um evangélico aceita Jesus Cristo, estamos então “perdendo o preconceito” e enxergando o “verdadeiro valor do funk”. Está correto? Claro que não. Numa época em que Sílvio Essinger junta coro ao Hermano Vianna Filho na bibliografia sobre o “funk carioca” e a dupla de techno brasileira Tetine faz “homenagem” ao “pancadão”, temos que esclarecer as coisas, porque seus defensores estão mais confusos do que parecem ou imaginam.

Vamos repetir mais uma vez que ter preconceito não reflete necessariamente rejeitar as coisas, e sim compreendê-las mal. Nós, que somos contra esse tal “funk carioca”, não podemos de forma alguma ter preconceito com esse gênero porque ele se apresenta a nós em todos os lugares. A contragosto, ouvimos mais o “pancadão” do que todos os seus defensores juntos. Vamos ao supermercado, toca “funk carioca”. Damos um zapping na TV pelo controle remoto, lá estão DJ Marlboro, Tati Quebra-Barraco e derivados dando seu depoimento. Damos um passeio pelo rádio FM e lá está o “pancadão” aparecendo em algumas emissoras. Folheamos jornais e revistas, lá estão seus ídolos nas reportagens tendenciosas. E consultamos a Internet e, sem querer, aparece tais ídolos nos sites que consultamos para buscar outras informações. E, quando vamos à praia, ao passeio na praça, quando apenas passamos perto dos camelôs, lá está o “funk carioca” rolando. E vemos, mesmo a contragosto, “cachorras”, “tigrões”, MCs, DJs e tudo o mais. Praticamente nós temos um curso intensivo de “funk carioca”. E não é por isso que vamos passar a gostar. Odiamos do mesmo jeito.

Graças à recente onda de “cultura trash”, Marlboro foi incluído no elenco da edição 2003 do Tim Festival, graças a uma mãozinha do defensor do popularesco Hermano Vianna Filho, irmão do paralama Herbert.

Os defensores do “funk carioca”, os mesmos que reivindicam a “ruptura dos preconceitos”, são os mais preconceituosos. Eles disfarçam a mediocridade do gênero com apologias à vida dos ídolos e à origem pobre (superada) dos mesmos. Há muito marketing antes de qualquer audição musical. Além disso, biografia não substitui talento. O sujeito pode ser pobre, ter mãe doente, uma multidão de irmãos para cuidar, ter surgido de uma favela violenta e tudo, mas se ele é um cantor medíocre, é justamente isto que conta. Não adianta termos pena, vingirmos que adoramos sua música, se sua voz dói em nossos ouvidos de forma irritante e suas melodias, se existem, são muito mal-feitas.

DESFAZENDO MITOS REALMENTE PRECONCEITUOSOS

A gente aqui vai esclarecer um pouco mais sobre o “funk carioca”, desfazendo alguns mitos, mitos estes que são lançados pelos próprios defensores, que desconhecem neles mesmos portadores dos verdadeiros preconceitos sobre o “estilo”.

O ‘funk’ é o grito de libertação das favelas do Grande Rio.
De jeito nenhum. Grito de libertação inclui manifestação dos problemas e uma busca de uma vida digna e melhor. O que o “funk carioca” faz é apenas um paliativo para a pobreza que mais expressa seu conformismo do que a revolta em si. Grito de libertação foi o samba, o blues e o reggae, quando não tinham sua popularidade consagrada no mundo. Dá para perceber que o “funk carioca” é só curtição, entretenimento; o sofrimento pessoal, se existe, não passa para o “funk carioca” que, como toda tendência popularesca, é marcada por rostinhos sorridentes e manifestações de conformismo. O “funk carioca” é totalmente a favor do “sistema”, porque, se não o aprecia, tira sarro dele.

O ‘funk’ é a canção de protesto do morro.
Não é não. Protesto inclui falar de problemas e buscar solução. Desde quando “Dako é bom” é ‘canção de protesto’? Há algumas músicas que aparentemente parecem protesto, como aquela do tal “Silva funkeiro que é pai de família”, mas mesmo assim são poucas. Além disso, não há inconformismo nem uma postura clara de revolta. Há, isso sim, uma busca de entretenimento através de manifestações de mau gosto, bem grosseiras. Alguém imaginou que as “cachorras” botando as mãos nos joelhos e rodopiando seus traseiros estão protestando contra o “sistema”? Tirar sarro dele não é protesto. É conformismo, é conivência. Protesto quem fazia eram os jazzistas, os cantores de blues, os sambistas, os músicos de folk.

Até os “proibidões” são válidos para o sucesso do ‘funk’.
Os “proibidões”, que são as músicas de “pancadão” que apresentam temáticas agressivas relacionadas a violência e sexo, não podem ser considerados válidos. Suas letras, na melhor das hipóteses, só expressam o mau gosto de seus intérpretes. Na pior das hipóteses, chegam a exaltar a criminalidade da favela, como se acreditasse em supostos Robin Hood nos morros cariocas. O fato de considerar a validade do “funk carioca” para o sucesso reflete uma ânsia paranóica de seus defensores em explorar o sucesso comercial de todos os seus ídolos.

As “cachorras” são mulheres independentes.
De jeito nenhum. Só porque elas saem à noite sem companhia masculina, só em grupos de garotas, isso não quer dizer que elas sejam mulheres “independentes” ou “emancipadas”. Muitas dessas garotas vivem ainda com as mães – isso quando os respectivos pais não abandonaram suas esposas – e algumas apenas trabalham como babás, empregadas domésticas ou algum outro emprego mal remunerado. No fundo, elas dependem mesmo é de um marido e sua única vocação é mesmo de serem donas-de-casa com dedicação exclusiva para seus maridos.3 Mas elas fingem que abominam isso e, arrogantes, acham que podem conquistar nerds universitários com um simples (e grosseiro) assédio. Elas que tirem as potrancas do temporal, porque seus maridos em potencial, os “tigrões” já se encontram em suas comunidades. Em Salvador, as “cachorras” são denominadas “periguetes” e os “tigrões”, “putões”.

“O ‘funk’ é a verdadeira MPB” (DJ Marlboro)
Afirmação mais ridícula que essa é difícil. Não vamos aqui dizer que a música brasileira é fechada para a influência estrangeira. Mas ela não define por um ritmo estrangeiro “puro” que apenas ganha letras em português. Música Popular Brasileira, mesmo com influências importadas, sempre tem alguma identidade local, e não se fala só na letra ou nos aspectos sociológicos. Também os aspectos melódicos pesam, e muito. Além disso, o “funk carioca” não é música, é uma tendência popularesca, por sinal de gosto bastante duvidoso. E acima de tudo tem um quê de cafonice explícita. Não interessa aqui se Caetano Veloso e Gilberto Gil apóiam. Reconhecemos até nisso uma falha deles em se renderem a tudo que significa “espetáculo”. A MPB exige compositores competentes, música de qualidade. A miséria, em si, não representa talento da MPB. Ter mãe doente, muitos irmãos e uns filhos para cuidar não representa talento para a MPB. Até porque vocação musical é uma coisa, família carente é outra completamente diferente. Não porque pobre seja incapaz de fazer música. O mestre Cartola foi uma prova maravilhosa disso. Mas, infelizmente, essa não é a “praia” dos funkeiros. Boa parte dos funkeiros deveria ter seus próprios empregos, ao invés de promover um ritmo de gosto e qualidade duvidosos.

Tati Quebra-Barraco é feminista.
Falaram que Kelly Key era feminista porque a mocinha queria tirar satisfações do ex-marido Latino (o “guru visionário” do establishment escutaquiano de Álvaro Pereira Jr.). É aquela conversa: fulana é “feminista” porque suas letras falam de sexo e falam mal de homens etc. As mesmas pessoas que hostilizam a Marta Suplicy por causa de seu jeitão de “dondoca” e hoje renegam a importância feminista da ex-prefeita de São Paulo agora insistem que Tati Quebra-Barraco dá uma “verdadeira aula de feminismo”. Para um Brasil que quis vender a Carla Perez sob a falsa imagem de uma “Leila Diniz às avessas” (marcada não pela dignidade e inteligência que marcaram a falecida atriz, mas pela ignorância triunfante de uma mulher-objeto), faz sentido classificar de “feminista” qualquer baranga que fale mal de homens e aborde o sexo de uma forma banal. Não, Tati Quebra-Barraco não é feminista. Nem na Zona Sul, nem na Baixada Fluminense, nem na Cochichina. Se ela tem filho para sustentar, é outra história. Feminismo não é mesmo. Feministas são Fernanda Montenegro, Ruth Escobar, Ruth de Souza, Elaine Bast, Sônia Braga, Sônia Bridi, Ana Paula Padrão, Lorena Calábria. Ser feminista vai muito mais do que a aparente defesa de uma “conquista de espaço”, coisa que muitas “louras burras” (que tanto podem ser as patricinhas do Leblon quanto as “cachorras” de Nova Iguaçu) até fazem. As feministas autênticas são inteligentes, abominam a vulgaridade, buscam a dignidade, são sóbrias e não ficam tirando sarro da condição de mulheres-objeto. Uma feminista dificilmente seria dançarina do É O Tchan. É bem mais fácil uma feminista ser multi-instrumentista de rock progressivo. As verdadeiras feministas não usam o machismo para tirar vantagem, porque aí é conivência com os machistas. As verdadeiras feministas vão longe disso.

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  1. É bom deixar claro que o verdadeiro funk se expressa através de nomes como James Brown, Earth Wind & Fire e Barry White. Para nós, estes nomes são o verdadeiro funk e não dos sub-arremedos que apenas diluem até o nível mais rasteiro o som eletrônico do discípulo de James Brown, Afrika Bambataa. Deixamos o termo “funk”, que na verdade corresponde ao som “batidão”, “pancadão” ou “balanço”, sem as aspas, de acordo com o texto original. []
  2. Talvez por ser uma análise complexa para um texto de espaço limitado num jornal impresso, o autor do texto não deixou claro tal comentário. O que o autor quis dizer, portanto, é que a obra de arte tem base social, a partir da combinação entre a vida e as preocupações existenciais nobres do homem e o seu potencial criativo, resultando numa produção artística, a obra de arte, que é feita para durar, por sua beleza e expressividade. Em outras palavras: a obra de arte tem beleza, imagem e motivação social, o que não há no chamado funk, ritmo feito apenas para entretenimento, sem preocupações com a posteridade — apenas o marketing é que tenta evitar o perecimento do funk como fenômeno de mídia e público — , sem a menor beleza e sem qualquer tipo de expressividade. []
  3. Viram? O funk é o talibã da música. []